quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O GOLPE DO MACHADO

Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 23/01/2013 - A107
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Dormir pensando nas atividades do dia seguinte; acordar cedo para logo em seguida desenvolver todo um ritual de preparação até está pronto para encarar o trânsito e chegar ao local de trabalho no horário adequado. Respirar fundo, encontrar entusiasmo para mais um dia de rotina, rotina, desgaste, estresse, conquistas, tristezas, alegrias, rotina, rotina, cansaço, trânsito até o retorno ao lar. O ritmo condicionante e automatizado imposto ao cidadão pelas circunstâncias e pelo nosso modelo econômico e social sufoca seus centros nervosos e criativos tornando-os criaturas autômatas e extremamente dependentes do sistema que as alimenta e ao mesmo tempo as consome. Esse tipo de coisa até lembra aqueles animais de zoológico que desaprendem a viver livres na natureza. O ambiente de trabalho envolve de tal forma o empregado que ele dificilmente consegue trabalhar sem que fortes vínculos afetivos e psicológicos sejam criados com as pessoas que interage ou com o local onde desenvolve suas atividades diárias. Não se consegue, por exemplo, voltar para casa sem trazer a empresa junto consigo (como se ela fosse um encosto); dificilmente se consegue esquecer total e absolutamente os acontecimentos do dia que passou. 

No ambiente de trabalho vive-se toda uma história envolvendo peripécias, paixões, discordâncias, confrontos, amizades, tensões etc. Aquele seu local de trabalho, aquele seu posto, aquela sua mesa, aquele seu cantinho; aquele é o seu território, é a extensão da sua casa. Ali estão suas coisas arrumadas do seu jeito, suas anotações, o porta-retratos etc. Ali, em cada coisa está impregnado um pouco de você. E as empresas querem isso mesmo, quer essa dependência, essa entrega absoluta; elas querem a quintessência do empregado. Não querem somente o envolvimento, querem o tal comprometimento. Na realidade, todo um vasto rol de ideologias administrativas fomenta o apego quase religioso aos dogmas inquebrantáveis propalados pela sagrada e inexpugnável cúpula. 

Quantos acontecimentos se desenvolvem nesse ecossistema, quantas expectativas são criadas, quantas ilusões são perdidas, quantas pessoas são prejudicadas, quantas injustiças são cometidas!! Como afirmou o famoso Cardeal de Richelieu, saber dissimular é o saber dos reis. Então, para defender o reinado e o Bem comum, muitas vezes é preciso convencer de modo ardiloso, é preciso conquistar mentes e corações para a causa maior. Nem que depois muitos bravos soldados sejam preteridos e deixados ao relento; mesmo que tenham dado o próprio sangue no front, ainda assim podem ser bruscamente desterrados e banidos.

A separação é sempre algo doloroso, visto que isso se traduz no rompimento de uma série de vínculos emocionais, afetivos e psicológicos. Por mais que o empregado tente não se abalar, dificilmente ele consegue manter sua estrutura psicológica intacta diante de uma demissão sumária. O ato de demitir possui uma carga destruidora como se fosse uma sequência de explosivos a implodir uma edificação. No final fica um monte de escombros em meio a uma poeira sufocante e perturbadora. Num determinado momento, várias coisas são suas: seu posto, sua autoridade, seu comando, seu poder de mando, sua mesa, seu computador, o respeito ao seu cargo, o tapinha nas costas, os sorrisos, as reverências. No outro momento tudo é bruscamente implodido. Você volta dias depois para acertar as contas e olha a sua mesa como visse sua ex-namorada beijando outro homem. Você observa os sorrisos amarelos, a frieza do ambiente, os olhares atravessados, o desprezo de uns e o constrangimento de outros. Toda aquela doação, todos os anos de entrega total e absoluta, toda devoção à causa, todo o comprometimento, tudo é bruscamente quebrado e anulado pelos números constantes no documento de rescisão de contrato de trabalho. Você volta para casa no meio da tarde; chega a noite e lembra de tantas atividades para fazer no dia seguinte que não mais serão feitas. O dia amanhece e aquele impulso de preparar o espírito para mais um dia de trabalho cria uma confusão e uma tristeza profunda. 

Aos sobreviventes que presenciam tais cenas fica a reflexão sobre sua própria condição de objeto descartável. “Será eu amanhã em tal lastimável situação?; Será que estou me doando demais?; Será que minhas expectativas não estão exacerbadas?; Será que vale a pena entregar o meu espírito junto com a minha dedicação?”. Assim, cada lágrima ensina-nos uma verdade e muitas vezes as verdades vão endurecendo nossa conduta e arrefecendo nosso entusiasmo para que lá na frente estejamos menos fragilizados quando recebermos o golpe do machado. Métodos cruéis e desumanos ainda são muito comuns em tantas empresas despreparadas para administrar seus empregados. O respeito à dignidade das pessoas deveria pautar todas as ações das empresas. O tão sagrado conceito de comprometimento deveria ser uma via de mão dupla. 

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