terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Reforma tributária – trocar seis por meia dúzia


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio  dia   21 / 2 / 2023 - A474
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Grandes obstáculos estão no caminho da reforma tributária; mais do que isso, temos à nossa frente um abismo intransponível. A coisa toda é tão nebulosa que não se consegue vislumbrar nada de positivo no horizonte. O maior entrave está no arquétipo solidificado na cultura brasileira de que rico não paga imposto. O próprio ex-ministro Paulo Guedes afirmou: “rico tem que ter vergonha de não pagar imposto”. No Brasil, existe regressividade até no imposto de renda. Por exemplo, nos EUA, quanto mais alto é o ganho, maior é a taxação; no Brasil é o contrário. Enquanto o brasileiro de salário equivalente a US$ 900 paga 27,5% de imposto de renda, o ricaço premiado em milhões numa operação de IPO paga apenas 15% do mesmo imposto de renda. E o super hiper mega milionário paga somente 7% de imposto de renda, conforme estudo da professora Maria Helena Zockun (USP). Nos EUA, um salário de US$ 10.000 paga 10% de imposto de renda enquanto a carga do milionário é de 37%. Mais um detalhe curioso: o estadunidense pode fazer muito mais abatimentos que nós, brasileiros. Mas o pior de tudo é que o super rico brasileiro manda e desmanda no Legislativo, no Executivo, no Judiciário etc. Basta lembrar da dupla dinâmica Joesley Batista / Marcelo Odebrecht que tinha comprado a máquina pública por inteiro. Desse modo, e com todo mundo no bolso, o rico não quer ser incomodado. Por conta dessa ordem patronal, nada, absolutamente nada de efetiva progressividade é prioridade na pauta da reforma tributária. Toda a discussão gira em torno do aumento do ISS de 5% para 25% ou 30%. E eu aposto que, depois de décadas, a única coisa que veremos será aumento do ISS. Isto é, vão aumentar ISS e chamar a pilantragem de reforma tributária.

Outro grande entrave está na monstruosa indústria do contencioso fiscal que se agigantou nas últimas décadas. Os capitães dessa monumental indústria se alimentam da lama burocrática e assim ficam mais ricos na medida em que a confusão normativa se agrava. O ambiente normativo se transformou numa panela de pressão prestes a explodir, considerando a extremada judicialização das regras fiscais. Parece que estamos caindo num poço sem fundo, em que todo dia mais e mais normatizações confusas enchem as páginas dos diários oficiais. Por último, o STF decidiu pela quebra da coisa julgada, o que vai esculhambar o que já é bagunçado. Por conta desse ambiente legal avacalhado, diversas empresas se veem obrigadas a contratar pelotões de advogados caros. E com essa loucura caótica gerando bilhões de receitas advocatícias, é claro que os beneficiários vão lutar com unhas e dentes contra qualquer proposta séria de reforma tributária. E o fato mais assustador é que o dinheiro compra tudo. E a todos. Não à toa, o Brasil possui a maior concentração de advogados do mundo.

A partir dessas premissas, os alquimistas burocráticos são obrigados a fazer uma reforma tributária que atenda os desejos dos ricos e da indústria do contencioso. Na verdade, o contorcionismo tem por finalidade mexer e remexer de modo que tudo fique do mesmo jeito (ou pior). Isso está claro nas maluquices das propostas pautadas no Congresso Nacional, onde, por exemplo, fervilha a discussão sobre créditos de serviços, o que, obviamente, assanhou a indústria do contencioso que já enxerga muitas possibilidades de ganhar dinheiro.

O terceiro entrave é gêmeo siamês do segundo, que é a comichão pela complexidade burocrática, onde o legislador procura sempre o pior do pior do pior do pior do pior dos caminhos para estabelecer uma normatização legal. Parece existir em todas as esferas fiscais um setor de complicação; um setor de infernização ligado diretamente ao capeta, que busca diariamente criar meios de atormentar a vida do brasileiro com leis indecifráveis. Parece até que tudo é codificado por esfinges maliciosas que se esmeram na construção de armadilhas fiscais, bem como, normas potencialmente geradoras de contencioso. A face paradoxal desse comportamento está na luta dos governadores por aumento de arrecadação, ao mesmo tempo que seus subordinados dificultam o abastecimento do erário. Se o governador, de fato, quer mais dinheiro, por que então não manda reduzir os mecanismos geradores de contencioso? Se existe boa fé no chefe maior do Executivo, por que ele não se cerca de pessoas capazes de garantir força jurídica ao órgão fazendário? Por que os assessores do governador são escolhidos pelo apadrinhamento e não pela competência? Será que não é possível existir gestão de verdade no Poder Público? Ou será que tá todo mundo no esquema do contencioso?

A fonte primordial do inferno tributário brasileiro está numa coisa chamada “não cumulatividade”, sendo que, se existisse seriedade nesse país, essa seria a primeira coisa a ser destruída na reforma tributária. O Pis/Cofins ficou duzentas mil vezes mais complicado quando ingressou no regime da “não cumulatividade”. Ou seja, lá, no passado, era tranquilo calcular e pagar Pis/Cofins, e hoje é o troço mais louco do mundo. Da mesma forma, o ISS é mais simples que o antigo Pis/Cofins, mas, como desgraça pouca é bobagem, as tais PEC 45/110 querem jogar o ISS no inferno onde já queimam ICMS e Pis/Cofins. A prova de que a “não cumulatividade” é o pior dos mecanismos tributários está na criação da substituição tributária ou antecipações por diferença de alíquota ou pautas etc., sendo todas ilegais por descumprimento do artigo 155, § 2º, I, da CF. As fazendas estaduais odeiam a “não cumulatividade” por fomentar toda espécie de engenharia nociva ao erário, e ao mesmo tempo criar gigantescas dificuldades de controle e fiscalização. Então, fica a pergunta curiosa: Se a “não cumulatividade” é problemática por natureza, por que o legislador é tão apegado a ela? Será que esse legislador insiste na “não cumulatividade”, exatamente, por ser uma fonte vigorosa de contencioso fiscal? Será que existe um pacto diabólico entre partes interessadas?

Outra fonte cancerígena se chama “imposto por dentro”, que impede a transformação de inadimplência em crime de apropriação indébita. O sistema de “imposto por dentro” não permite que se enxergue o imposto cobrado do cliente, já que fica oculto na formação de preço. Por isso, a tese da criminalização da inadimplência do ICMS não prevalece, exatamente, porque o agente fiscal não tem como provar a dita apropriação indébita. Todo o universo empresarial sabe que o imposto destacado na nota fiscal nem sempre está na formação do preço, já que o concorrente sonegador obriga os demais a nivelar o preço de modo tal que os impostos não são cobrados do cliente, mas destacados na nota fiscal, como se tivesse sido. Por outro lado, mesmo que a venda seja três vezes maior que a compra, o comerciante pode dizer que a diferença é lucro. Ou seja, se toda tributação sobre consumo fosse “por fora” (tipo, IPI ou retenção de ICMS-ST), a sonegação cairia drasticamente. Mas, claro, e novamente, ninguém quer organizar nada; todo mundo no poder público luta para manter a bagunça e assim fomentar condutas ilegais e turbinar a indústria do contencioso. Na verdade, tudo orbita a fabulosa indústria do contencioso.   

O discurso da reforma tributária lembra a indústria da seca, cujas temáticas servem única e exclusivamente para alavancar carreiras políticas. Ou seja, os anos passam, os mandatos passam, propostas são incessantemente debatidas e a vida do brasileiro honesto só piora. Nesse momento, por exemplo, acompanhamos notícias fervilhantes envolvendo debates enfadonhos e repetitivos.

Talvez, a nossa desgraceira tributária seja culpa do contribuinte que entregou tudo nas mãos dos políticos e dos burocratas, mesmo sabendo que esse pessoal não tem interesse nenhum em reforma nenhuma, já que vive com gigantescos salários pagos pelo espoliado trabalhador. As empresas deveriam criar um núcleo de altos estudos tributários que redesenhasse a nossa estrutura tributária, que elaborasse projetos e depois apresentasse ao Legislativo. Mas então, iríamos esbarrar na velha ojeriza à progressividade. E assim, os projetos apresentados contemplariam mais isenções para os ricos e mais impostos para os pobres. Resumo da ópera, o Brasil é um país sem salvação. Curta e siga @doutorimposto. Outros 473 artigos estão disponíveis no site www.next.cnt.br como também está disponível o calendário de treinamentos ICMS.