terça-feira, 9 de agosto de 2011

PROPOFOL

Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio AM em 09/08/2011
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O cidadão norte-americano é um ferrenho defensor do seu território. Tanto, que não pensa duas vezes antes de dar um tiro naquele que ousar invadir os seus domínios. É assim com sua casa, seus familiares, seu país. Por aqui, em terras tupiniquins, a coisa é bem diferente. Agimos como se nada fosse nosso. Nossas propriedades podem ser invadidas a qualquer momento sem que tenhamos o direito de defender aquilo que trabalhamos duro para construir. O pior de tudo é que os invasores até recebem incentivos do governo – algo inimaginável nos Estados Unidos.

Onde estarão as raízes do nosso comportamento pacífico letárgico passivo? Será que carregamos na nossa genética a marca do colonizador explorador que veio de Portugal com a finalidade específica de arrancar daqui o que pudesse para depois retornar ao velho mundo? Ou será que existe algum elemento maquiavélico que é injetado diariamente na veia do povo brasileiro para mantê-lo em alto grau de resignação a tudo de mal que lhe acontece?

Há pouco tempo testemunhamos a histórica queda do ditador egípcio Hosni Mubarak, que agora está sendo julgado pelos seus desmandos no poder. Somos testemunhas também de várias outras rebeliões mundo afora de gente que reage violentamente às agressões e desmandos dos seus governos, saindo às ruas para protestar com todas as forças de que dispõem. Por esse motivo, os governantes de muitos países são extremamente cautelosos com a coisa pública, visto que seus cidadãos não toleram incompetência e corrupção. No Brasil, o descaramento, desmandos, corrupção, são pragas de extensa vascularização no tecido social. Parece que todo gesto, toda assinatura, toda palavra provinda do ente público carrega algum tipo de contaminação. Sendo assim, por gerações e gerações essas deformidades vêm sendo catalisadas pela química social até ganhar ares de normalidade.

A bandalheira política se transformou numa riquíssima fonte de piadas jocosas que divertem os incautos e enriquecem humoristas e corruptos, deixando o espectador espoliado e risonho. Na realidade, o humor político tão alastrado e prolífico é um dos mais poderosos anestésicos que o cidadão pode experimentar, visto que seus efeitos entorpecentes impedem a percepção das chibatadas que constantemente lhe arrancam o couro. Poder-se-ia dizer que os humoristas até deveriam ser remunerados pelos políticos em vista do imensurável serviço que prestam a esse pessoal; considerando que enquanto o povo se diverte a bandalheira corre livre, leve e solta. O mais impressionante é que todas as artimanhas ignóbeis possuem um jargão humorístico. Assim, para cada situação embaraçosa que por vacilo o político desonesto se envolver, ele terá ao seu dispor um leque de opção de argumentos cínicos para se “defender”, como se houvesse uma espécie de manual do descarado inescrupuloso. O humorista procura transportar o arsenal de bandalheiras para suas charges e espetáculos teatrais. Dessa forma, o cidadão acaba inconscientemente achando tudo naturalmente engraçado. E como diz o velho ditado, “brincando, brincando o gato comeu o rato”.

A bandalheira política deveria ser sempre motivo de indignação e não de piada. Interessante, é que não se vê humorista fazendo piada com ações de estupradores e estripadores. Talvez, pelo horror que isso causaria ao público. A corrupção e os desmandos políticos são de uma perversidade visceral. Por esse motivo deveriam provocar vômitos e não risadas.





terça-feira, 2 de agosto de 2011

INSENSATEZ DESNUDADA

Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio AM em 02/08/2011
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Aventurar-se nos labirintos da alma de uma nação com o propósito de dissecar hábitos e costumes é uma tarefa arriscada e extenuante. Exige um hercúleo estado de lucidez e desprendimento para obter visualização panorâmica do objeto de estudo. E o autor deve se policiar a fim de que os próprios valores não comprometam a coesão da obra. A Rede Globo de Televisão possui uma longa lista de novelas acentuadamente temperadas com questões morais, onde temas relacionados à cidadania, preconceito, comportamento etc., são gradualmente desfiados com o objetivo de facilitar a digestão do telespectador.

Exibida no final dos anos 80, a novela Vale Tudo mostrou a cara do Brasil, suas idiossincrasias, seus dilemas morais, sua imatura cidadania. Na época, as feridas do desregramento ético da nossa sociedade foram expostas sem o menor pudor. A empáfia da empresária Odete Roitman ilustrava muito bem o universo da elite burguesa que ainda carregava o ranço aristocrático do século XIX. A atriz Glória Pires interpretou brilhantemente a maquiavélica Maria de Fátima, que passava por cima de todo mundo para levar vantagem em tudo que fizesse – era a personificação da “Lei de Gerson”. Lamentavelmente, a mensagem deixada com a “banana” que o inescrupuloso Marco Aurélio deu ao fugir do país foi de que o Brasil simplesmente não tinha jeito.

A novela Insensato Coração faz uma conexão e um comparativo de dois momentos históricos com sua irmã gêmea Vale tudo. A diferença é que dessa vez há espaço para reforço de valores éticos e morais. O clamor da faxineira Haidê para colocar sua prole nos trilhos da honestidade já não soa como um discurso quixotesco, ao contrário do correto Ivan Meireles, de Vale Tudo, que na época era tido como um ingênuo deslocado da realidade. A intenção dos autores de Vale Tudo era justamente questionar se valia a pena ser honesto no Brasil dos anos 80. A mensagem de agora é que a coisa não está tão esculhambada como antes, visto que o cidadão brasileiro começou a ver gente poderosa ir para a cadeia, mesmo que seja libertada no dia seguinte. Essa mensagem é muito bem ilustrada na cena da atual novela em que o banqueiro Cortez repete o antológico gesto da “banana”, só que com resultado bem diferente: o figurão foi preso e condenado – algo impensável há vinte anos.

De lá para cá uma coisa não mudou um milímetro. A absoluta certeza da impunidade continua solidamente incrustada na consciência de corruptos e facínoras das mais variadas cepas. O banqueiro Cortez é absolutamente convencido de que pode fazer tudo com todos, seja através de medidas convencionais ou criminosas. Por mais chocante que sejam as atitudes desse bandido do colarinho branco, os personagens da vida real são muito piores. Prova disso é a sucessão de escândalos que abarrota os noticiários dia após dia.

Outros personagens de Insensato Coração podem ser classificados como arquétipos na medida em que retratam comportamentos sufocados pela hipocrisia do falso moralismo; mostram o que há debaixo da casca polida normalmente apresentada nas relações sociais: A mãe protetora e carinhosa rouba as jóias da prima; a diretora moralista da Liga das Famílias Cariocas tem um caso extraconjugal; a mocinha ingênua e injustiçada se revela uma exímia mentirosa; a perua ambiciosa pouco se importa com o dinheiro sujo do marido canalha. Será que tudo isso só acontece na televisão ou a novela desnuda as imposturas acobertadas pelo fino traquejo social?