quarta-feira, 25 de abril de 2012

ICMS SOBRE COMODATO

Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 23/04/2011
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O mandamento sagrado “Pacta sunt servanda” é um brocado latino que significa "Os pactos devem ser respeitados" ou mesmo "Os acordos devem ser cumpridos". Esse axioma jurídico é o princípio base do Direito Civil e do Direito Internacional, sendo inclusive consagrado no artigo 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que reza: “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé.” O Brasil é signatário dessa Convenção. Outro brocado que merece atenção especial é “In claris non fit interpretatio”. Ou seja, “No que é claro não cabe interpretação”. O inciso II, do artigo 5º, da nossa Constituição Federal estabelece que “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Faz-se pertinente evocar o direito romano, por se tratar de um incomensurável campo de observação e base da estrutura jurídica de muitas nações, inclusive a nossa. Seus institutos continuam vivos nas obrigações e nos diversos tipos de contrato, tais quais: o de compra e venda; o comodato, o depósito, o penhor, a hipoteca.


É prática consolidada na SEFAZ taxar todo tipo de operação que ingressa no seu sistema de controle fiscal. Quando a tributação foi indevida, ou seja, quando a legislação tributária for chutada para escanteio, cabe ao contribuinte interpor um recurso administrativo junto à Gerência de Análise e Revisão de Notificações para solicitar que o órgão fazendário cumpra a lei. Um bom exemplo é a taxação indevida de diferencial de alíquota de ICMS sobre bens de informática, os quais são precisamente definidos pelo Anexo I, do Decreto Federal 7.010/2009.

Ao que parece, a SEFAZ possui uma gloriosa estrutura de tecnologia da informação, gerenciada por profissionais de altíssimo nível técnico. Acredita-se que esse pessoal possui competência suficiente para programar o sistema de forma que não sejam emitidas notificações de antecipação de ICMS dos bens de informática. O mecanismo lógico para a operacionalização de tal procedimento é claro e inequívoco para qualquer aluno do curso superior de informática. Mesmo assim, o bom senso estrebucha-se toda vez que tenta achar uma justificativa aceitável para que tal procedimento ainda não exista. Os NCM estão no Decreto 7.010/2009; os mesmos NCM estão nos arquivos eletrônicos das notas fiscais. É pura lógica matemática. É só relacionar um com o outro. A consequência dessa intelijumência é a montoeira de processos que se esparrama por tudo quanto é canto da GERN, onde funcionários se debruçam sobre pilhas de papéis para verificar o óbvio ululante (In claris non fit interpretatio).

A Secretaria de Fazenda do Estado do Amazonas está às voltas com uma série de dificuldades para controlar as inúmeras operações de comodato que ocorrem na nossa região. É possível que alguns fiscais acreditem que várias operações mercantis estejam travestidas de comodato. Devido à falta de capacidade do órgão para separar o que é certo do que é errado, decidiu-se então invalidar o instituto do comodato. Assim, a SEFAZ está avisando a todo mundo que irá cobrar ICMS das operações de comodato, contrariando frontalmente o Inciso XIII, do Artigo 4º, do Decreto Estadual 20.686/1999, que dispõe: “O Imposto sobre Circulação de Mercadorias não incide sobre operações de comodato”.

O caminho utilizado pela SEFAZ para invalidar as operações de comodato é a interpretação estreita do artigo 579, da Lei nº 10.406/2002, que diz o seguinte: “O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis”. O artigo nº 85 do mesmo diploma legal afirma que “São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade”. É consenso da maioria dos doutrinadores do direito que a fungibilidade pode ser definida pelas partes de um contrato. Algumas outras correntes apegam-se a teoria de que a fungibilidade é característica intrínseca e natural das coisas. Por se valer da segunda tese, a SEFAZ simplesmente anula o instituto do comodato, reconhecendo que somente uma obra de arte, por exemplo, é que pode ser objeto de comodato. Por esse raciocínio ninguém poderia entregar uma coisa a outrem para uso gratuito. Existiriam assim somente contratos de venda ou de aluguel (Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei).

A diretriz do Código Civil é meramente orientativa, visto que confere ao termo fungibilidade uma enorme carga de subjetividade. Por exemplo, duas canetas iguais podem ser tratadas de maneira diferente por pessoas distintas: uma pessoa pode alegar que uma delas, apesar de igual à outra, é mais valiosa, pois pertenceu a uma personalidade importante. Dessa forma, o foco da atenção deve ser voltado para a observância dos contratos (Pacta sunt servanda).

Mais uma vez, as regras fiscais são estabelecidas em reunião e não em lei. O contribuinte, por sua vez, está sempre navegando num mar tempestuoso onde tubarões famintos fazem de tudo para afundar o navio.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

DANE-SE A LEI

Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio em 18/04/2012
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No estado de direito prevalece o chamado “império da lei”. Isso significa que as leis criadas pelo Estado limitam as ações das pessoas físicas e das pessoas jurídicas. Limitam também o próprio poder estatal, evitando-se assim o absolutismo arbitrário. Os estados ocidentais modernos aplicam a teoria da separação dos poderes de Montesquieu entre executivo, legislativo e judiciário, justamente para coibir abusos e propiciar um ambiente de equilíbrio legal e de exercício efetivo da cidadania. Todo esse instrumental teórico se opõe ao dito “direito divino” e à tentação de impor vontades ou opiniões surgidas de momento; tudo isso para evitar posturas semelhantes ao do rei Luís XIV e a sua célebre frase “O Estado sou eu”.

O espírito do rei Luís XIV costuma se apossar do corpo de muita gente. É possível que seja a entidade espiritual com maior número de downloads. Basta refletir um pouco sobre a nossa realidade cotidiana para constatar o grande número de “Luis XIV” que nos deparamos em órgãos públicos como Sefaz, Receita Federal, Prefeitura, Suframa, Junta Comercial etc. Todos esses “Luís XIV” são tentados a colocar a legislação de lado e impor a sua opinião particular quando são consultados ou quando analisam processos. A própria estrutura da legislação tributária foi propositadamente construída para evitar que a lógica seja prevalecida. E todo novo dispositivo legal publicado nos diários oficiais estará sempre contaminado pelo germe alucinado da complexidade desmedida. Claro, o objetivo do legislador é sempre evitar ao máximo que se encontre objetividade nas suas palavras, para que assim os “Luís XIV” possam ter espaço para pintar, bordar e tripudiar sobre o contribuinte.

Os órgãos estatais de controle costumam empurrar goela abaixo do contribuinte algumas normas que contrariam legislações superiores e por incrível que pareça, até normas que o próprio órgão cria. Um bom exemplo tem a ver com o ICMS dos bens de informática. A alínea “d”, do Inciso I, do artigo 12, do Decreto estadual 20.686/1999 estabelece tacitamente alíquota interna de sete por cento para bens de informática, assim definidos na LEGISLAÇÃO FEDERAL DE REGÊNCIA. A dita cuja legislação federal de regência é o Decreto 7.010/2009, cujo Anexo I determina o que é bem de informática através de uma lista de produtos com seus respectivos códigos NCM. Dessa forma, a SEFAZ sabe muitíssimo bem quais produtos são considerados bem de informática e mesmo assim, trata todos eles como se não fossem. O erário estadual nega o benefício do artigo 12 aos contribuintes quando aplica alíquota interna de 17% aos bens de informática nas notificações de antecipação de ICMS. Esse procedimento obriga o contribuinte a constituir um processo de solicitação de revisão de notificação para que o cálculo do imposto fique de acordo com a legislação estadual. Esse processo é composto por um calhamaço de cópias de uma infinidade de documentos. O pacotão de papelada é dado entrada no setor de revisão de notificação, onde pode ficar lá por anos a fio sem resposta, visto não existir prazo na Resolução GSEFAZ 24/2010, a qual disciplina o processo de revisão dessas notificações, significando assim que tais processos podem demorar décadas para serem analisados. Não à toa, esses ditos processos que aguardam análise se avolumam e já estão na casa das dezenas de milhares. Enquanto isso, o contribuinte continua mensalmente preparando vários processos de revisão de notificação e vendo seu volume de imposto pendente de decisão crescer exponencialmente. Para piorar esse quadro nefasto, o contribuinte é alvo do terrorismo dos fiscais que ficam permanentemente fazendo comentários sobre o risco de indeferimento dos processos.

Até pouco tempo atrás, a SEFAZ, meio que em doses homeopáticas, estava deferindo os pedidos de revisão de notificação dos bens de informática via acatamento da argumentação baseada no Decreto 7.010/2009. De um momento para o outro, deixou de considerar o Decreto 7.010/2009 como instrumento classificador de bens de informática e passou a adotar uma lista de produtos constantes no Anexo I, da lei estadual 23.994/2003. Essa atitude da SEFAZ afronta brutalmente a supracitada alínea “d”, do Inciso I, do artigo 12, do Decreto estadual 20.686/1999, que estabelece tacitamente alíquota interna de sete por cento para bens de informática, assim definidos na legislação FEDERAL de regência. Ou seja, É FEDERAL. NÃO É ESTADUAL. A regra está lá na legislação que a própria SEFAZ criou e que agora não está obedecendo. Onde nós estamos? Cadê o Ministério Público? Cadê o governador? Cadê os defensores do Estado de Direito? O que resta ao contribuinte fazer quando o órgão público atropela tudo quanto é lei e resolve fazer o que der na telha?

Se ninguém faz nada, só nos resta ouvir a canção “Who´s Gonna Save Us?” da banda australiana The Living End, que aliás, é bem apropriada frente ao assunto aqui trabalhado.

terça-feira, 3 de abril de 2012

FRAUDE NOSSA DE CADA DIA

Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio AM em 03/04/2012
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As recentes denúncias que escancararam o submundo das licitações fraudulentas ocuparam por inteiro os noticiários da Rede Globo de televisão. As cenas são chocantes, visto que mostraram o altíssimo grau que chegou a banalização de condutas deploráveis. Observou-se ainda a orquestração de um espetáculo dantesco, onde cinismo e caradura eram utilizados para conferir certo caráter de normalidade ao crime de corrupção e peculato. Os protagonistas das cenas lastimáveis demonstraram grande desenvoltura nas suas bem articuladas proposições, como se tudo aquilo fosse coisa corriqueira e prática mais do que comum a todo e qualquer processo licitatório. Ninguém ali exalou expressão de culpa ou demonstrou algum tipo de pudor. Pelo contrário, as falas eram diretas e insofismáveis, nos levando a deduzir que a amostra representativa colhida pela reportagem não é um fato isolado, é regra geral e absoluta. Dias depois o programa Fantástico levantou uma cifra milionária que iria para o bolso dos corruptos, caso fossem confirmados os contratos fraudulentos mostrados na televisão.

Se, a partir desse episódio televisivo, fizéssemos um pequeno esforço mental para refletir sobre tudo que foi noticiado, iríamos, com certeza, nos deparar com um vasto e infinito universo de corrupção. Imaginemos aqueles fatos mostrados na televisão acontecendo milhares e milhares de vezes todos os dias em tudo quanto é recôndito das repartições públicas de todo o país. Imaginemos uma roubalheira generalizada nos órgãos públicos. Imaginemos ladrões, ladrões, corruptos, corruptores, bandidos, ladrões, ladrões transbordando pelas janelas, repartições entupidas de ladrões e corruptos; bandalheiras, desvios, propinas e mais propinas; cuecas, meias e malas recheadas de dinheiro etc.

Pode parecer loucura, mas infelizmente a nossa realidade é pavorosa. Os estudos que vez por outra aparecem na mídia com dados sobre valores consumidos pela corrupção são superficiais e ridículos. A coisa é muito, muito mais feia e cabeluda. A corrupção e os desmandos possuem raízes extremamente profundas e capilarizadas. Poder-se-ia dizer que a corrupção é um câncer que já atingiu todas as células da administração pública. Quem bem conhece esse universo sabe disso. E sabe também que escândalo nenhum é capaz de diminuir o ritmo acelerado da bandalheira institucionalizada. Os bolsos sedentos de propina nunca se enchem; querem sempre mais e mais. A turma de corruptos sabe que a probabilidade de punição é praticamente zero. Esse pessoal tem plena consciência que existe uma legislação prontinha para proteger o bandido fraudulento. Quando 0,001% da bandidagem é flagrada em explícito e indefensável ato de corrupção, os fatos repercutem por um tempo, mas depois são esquecidos, sendo que lá pelo final a justiça proclama inocência por falta de provas ou por falhas no processo judicial. O corrupto sabe que tudo está esquematizado e institucionalizado em todos os escalões. Já o homem honesto, esse está com a maquiagem de palhaço tatuada no rosto.

O choque da reportagem do Fantástico tem rendido debates, questionamentos, revoltas etc. Algo semelhante ao corno que descobre um fato já sabido de todos. O mais curioso nessa história toda é observar a reação das autoridades “perplexas” e “chocadas” com as cenas cruas e grosseiras que invadiram os lares brasileiros. É nessa hora que se percebe no semblante dessas “autoridades indignadas” a qualidade artística da representação teatral que demonstram em frente às câmeras. Nem no cinema holywoodiano se vê tamanha perfeição. É um festival de atores talentosíssimos; todos dizendo que vão adotar sérias medidas para combater desvios de conduta na esfera pública.

Algumas pessoas mais ponderadas chegaram a dizer que é muito difícil combater a corrupção, forçando de certo modo a aceitação da normalidade desse estado de coisas. O cidadão de bem, claro, de forma alguma deve concordar com isso. A corrupção pode sim ser combatida. Basta que a nossa justiça comece a dar um mínimo de sinal de moralização da coisa pública. Basta punir de verdade pelo menos um corrupto. Em seguida, dois, três, quatro..., até a sociedade perceber que corrupção dá cadeia. Hoje, por incrível que pareça, o corrupto é visto por muitos como um modelo de sucesso, como uma pessoa que soube se dá bem. E por conta disso é alvo de inveja e admiração. Triste, lamentável, mas essa é a cara do nosso Brasil.