sábado, 31 de dezembro de 2016

UMA NOVA CONSCIÊNCIA


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 27 / 12 / 2016 - A279

Parece que tudo aconteceu em 2016: Impeachment presidencial, detenção do presidente da câmara, tragédias aéreas, prisões em série de políticos, delação do fim do mundo, desmoralização do STF, dilaceramento do sistema político etc., etc. E toda essa maçaroca embrulhada na mais aguda crise financeira das últimas décadas. Um grande empresário da nossa região declarou que em meio século de atividade empresarial, esse foi o primeiro ano de demissões em massa no seu grupo econômico.

Só agora está ficando patente e ostensivo a verdadeira causa das desgraças que assolam os serviços públicos. Somente nos últimos tempos as vísceras putrefatas dos agentes públicos espocaram num sincronismo orquestral. Daí, o fedor insuportável a empestar o país inteiro. Daí, a razão de tanta decepção de homens e mulheres que ficaram sem opção diante do tsunami de roubalheira que começou pelo litoral e chegou até os confins da Amazônia. A raiz de todo mal, portanto, nada mais é do que a intensiva, sistemática e epidêmica prática da corrupção. Tanto descontentamento é um prato cheio para os oportunistas de plantão.

Parece que nada funciona no Brasil. O regime militar foi demonizado por atrocidades hediondas, enquanto que a tão sonhada democracia só serviu para formar a maior gangue criminosa da história da humanidade, com mafiosos perigosíssimos formando uma única quadrilha instalada em tudo quanto é instância municipal, estadual e federal; executivo, legislativo, judiciário; empreiteiros, lobistas, operadores, banqueiros, advogados etc. Todo mundo unido pra roubar. E todos protegendo a todos. Enquanto um rouba, o outro não investiga, um terceiro não julga, uma quarta pessoa não pune e assim todo mundo sai ganhando. Dá um embrulho no estômago quando se vê um bandido de grosso calibre penalizado com prisão domiciliar (deboche acintoso). Bandido esse, que sozinho rouba o equivalente a um milhão de assaltantes juntos. O ladrãozinho fuleiro que rouba cem reais é linchado e preso numa cela imunda, mas quem rouba cem milhões é chamado de excelência num julgamento de mentirinha. Na percepção do atônito cidadão honesto, não há um só cantinho limpo; o nível de confiança em TODAS as instituições é simplesmente ZERO.

O brasileiro despertou no meio dessa imundície, onde faxineiros oficiais são os primeiros a emporcalhar o ambiente. O presidente ilegítimo que ocupa a chefia do executivo federal derrubou sua antecessora por uma questão burocrática pontual e depois disso trouxe para junto de si uma legião de suspeitos por crimes pavorosos – um absoluto contrassenso de quem pregava a moralidade da gestão pública demonizando os atos de corrupção do PT. A gestão Temer veio reforçar a velha e inexorável política – a velha política dos esquemas sombrios e tenebrosos. O que o PMDB não contava era com a imberbe maturidade política da sociedade brasileira, já cansada dos batidos discursos demagógicos.

O ano de 2016 mostrou que os membros duma sociedade possuem ideias próprias e que, portanto, não se dispõem a serem conduzidos como rebanho de gado. Os princípios moralizadores duma sociedade (aquelas doutrinas propaladas na televisão, nos livros, no ideário coletivo) podem só existir na propaganda. Isso significa que as pessoas estão ficando refratárias ao dogmatismo alienante. Isso significa que mesmo debaixo do bombardeio ideológico o indivíduo se volta para as suas próprias convicções. E depois descobre pelas redes sociais que não é o único rebelde. Isso explica o fenômeno Trump, bem como o Brexit, o “Não” Colombiano e outros movimentos sociais que sacodem várias regiões do planeta. A estrutura de castas está ruindo; as pessoas começam a brigar por um lugar ao sol. Brigar mesmo. Talvez essa, seja a base das próximas revoluções sociais. É bom que estejamos preparados para administrar um completo desalinhamento de princípios morais e cívicos. Os jovens, principalmente, não estão dispostos a ser tratados como cidadãos de segunda classe.

Os volumosos comentários das redes sociais evidenciam uma intolerância prestes a explodir numa revolta popular. Mesmo assim, os ladrões não param nem por um minuto de roubar. A bandidagem corre contra o tempo porque sabe que a coisa pode feder num futuro próximo.

É possível que toda essa turbulência de 2016 seja a primeira duma sequência de abalos sísmicos que irão revolver as nossas estruturas sociais e políticas. Sendo assim, que venham muitos rebuliços e confusões. Queira Deus, o Brasil tenha alguma chance de se salvar. 





terça-feira, 20 de dezembro de 2016

LIDERANÇA SOLITÁRIA


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 20 / 12 / 2016 - A278

Rafael Soares era o mais dedicado operário duma grande empresa. Atento e observador, achou por bem rifar entre os colegas um equipamento recém-chegado ao mercado. Surpreendentemente, o interesse geral cresceu tanto que vários outros sorteios foram acontecendo de modo tal que o fabricante do famoso equipamento lhe ofereceu uma concessão comercial. Em pouco tempo o antigo operário havia se transformado num empresário de sucesso. Era como se o homem tivesse trazido a Coca-Cola para o Brasil. Eram carretas e carretas de produtos chegando e logo sendo vendidas. Daí, que uma coisa foi puxando a outra, aumentando assim a variedade de mercadorias na sua loja. No afã de alcançar o máximo de consumidores possível veio então a ideia de expansão do negócio para vários estados da federação. E assim foi feito. O empreendimento subiu, subiu até que começou a engasgar. A parca experiência administrativa e a pouca habilidade para lidar com a burocracia empresarial atropelou o espírito empreendedor do senhor Rafael. Clientes não pagavam, filiais deviam muito à matriz, controles internos não funcionavam, faltavam procedimentos e políticas comerciais etc. Resumo da ópera, o melhor a fazer era liquidar tudo e viver do saldo patrimonial.

Eis que um estudante de contabilidade foi contratado para fazer um trabalho que ninguém sabia exatamente do que se tratava. O senhor Rafael expôs o quadro sintomático da empresa e pediu a esse contador que o ajudasse a salvar os negócios. O contador era um profissional experiente que havia ingressado tardiamente na universidade. Sua experiência em grandes empresas foi decisiva para redesenhar toda a estrutura empresarial. O trabalho foi feito a quatro mãos. Duas cabeças pensando harmoniosa e alinhadamente foram capazes de identificar e neutralizar as diversas falhas operacionais. E assim se seguiu um longo e intenso trabalho de correção de rumos. Por fim, na prática, uma nova empresa surgiu – mais profissional e mais estável. A empresa de hoje é líder em todos os mercados em que atua; possui um modelo de negócio admirado por clientes, fornecedores, funcionários etc. Enfim, um belo case empresarial.

É bom lembrar que nessa gloriosa trajetória houve um ponto de inflexão. Houve um momento em que a rota de declínio foi corrigida. Curiosamente, as soluções mais importantes não partiram do contador. Ele apenas ajudou o senhor Rafael no desenvolvimento dum raciocínio empresarial mais profissionalizado. Evidentemente, muitos detalhes técnicos concorreram para a formatação da nova cultura empresarial. Poder-se-ia dizer que uma boa conversa mudou tudo. Esse é o ponto.

A liderança é solitária. O brilhantismo do senhor Rafael era tolhido pela falta de interlocução. Ele não tinha com quem discutir assuntos estratégicos ou planejar em conjunto o passo a passo dos assuntos internos da sua empresa. Nenhum dos seus funcionários possuía maturidade pra esse tipo de coisa. Nem a firma de contabilidade responsável pela escrituração das suas contas tinha como prestar uma consultoria de gestão. E como o senhor Rafael era um homem simples e já tão escaldado pelas inúmeras traições de parceiros de negócios, ele precisava de alguém que fosse objetivo e que trabalhasse de modo simples e direto – sem floreios, sem ternos, sem rituais e sem perfumarias.

Quantos empresários, nesse momento, estão à deriva em algum aspecto do negócio? Trilhar uma mata fechada, sozinho e calado exige altos níveis de controle mental, além de esforço físico maior por não haver com quem dividir o exaustivo trabalho de desbastar o cipoal do caminho. Travar diálogos francos e abertos com um interlocutor altamente capacitado faz surgir um vasto horizonte de possibilidades. Além do mais, refletir e debater sobre os negócios, é um exercício indispensável para renovar as energias e conservar a chama acesa. Mesmo porque, tudo precisa ser renovado para manter a jovialidade.

Nesses nossos tempos de alta pressão governamental deve haver, no mínimo, um intenso diálogo contábil e fiscal. Pelo menos isso. Daí, que o interlocutor precisa não somente ter uma boa qualidade técnica, mas também a capacidade de traduzir para o cliente toda a intrincada burocracia normativa. Pesa nesse exercício uma boa didática e uma saudável relação de confiança. A informação é importante, o conhecimento é decisivo e o diálogo deve ser frequente.





terça-feira, 13 de dezembro de 2016

A MORTE DA POLÍTICA


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 13 / 12 / 2016 - A277

A mãe já idosa morava com seu único filho numa modesta propriedade rural. Eis que depois duma noite chuvosa ela estranha o fato do filho não ter levantado da cama. Por fim, descobre, perplexa, que ele estava morto. O desespero tomou conta da casa, visto que tudo perdera o sentido de existir. Não havia, portanto, qualquer alternativa de dar continuidade à rotina tranquila e acolhedora ao lado de alguém tão atento e cuidadoso. O senso de negação da realidade era tamanho que a atônita senhora quis acreditar que tudo aquilo era apenas um sono pesado. Por isso, não tomou nenhuma providência quanto aos rituais de sepultamento. A presença do corpo inerte reforçava aquela situação esquizofrênica. A coisa funcionou mais ou menos nos primeiros dias. Depois disso o corpo foi se deformando de modo que o clima de negação se transformou num pesadelo aterrorizante.

A tão badalada e temida delação do fim do mundo acabou por confirmar sua fama. Os primeiros depoimentos esquadrinham a dinâmica das relações criminosas que há entre o público e o privado. Impressiona, nesse caso, o espanto que ainda causou numa população já tão escandalizada pela farta e intermitente sequência de denúncias envolvendo todas as colorações partidárias. O que ficou claro, claríssimo, é que TUDO o que se refere ao poder público é completamente dominado pela corrupção. A impressão é de que nada se salva. Claro, óbvio, essa constatação é injusta com muitas pessoas que lutam pela qualidade dos serviços públicos. Mesmo assim, as profundas ramificações de agentes maliciosos nos assuntos de Estado e o recorrente repertório de ações criminosas nos levam a um PADRÃO de comportamento bem definido e acabado. O pior de tudo é que esse dito padrão é sistêmico e orientador de todo o funcionamento das ações públicas, com peso maior no modelo político estabelecido no país. Como teria dito o atual presidente, “a política tem dessas coisas”. Tal afirmação é a síntese daquilo que mais tememos admitir: Nosso sistema político morreu e mesmo assim estamos sem saber o que fazer com o cadáver. O defunto está lá, na cama, enrijecido e amarelado. Mas, atônitos pelo impacto da cruel realidade, tentamos acreditar que tudo ficará bem. Insistimos no discurso de que é preciso acreditar nas instituições. Místicos, iogues e monges tibetanos são desafiados a construir essa alquimia psicológica.

A política está mortinha da silva. A pergunta que fica é a seguinte: O que faremos com o corpo? O que virá depois? O que temos de alternativa?

A delação da Odebrecht mostra que cada gesto do ocupante dum cargo político é inteiramente movido pela corrupção. A corrupção é responsável pelo movimento de cada um dos 650 músculos do deputado, do senador, do governador etc. A corrupção substitui a glicose nos processos metabólicos da fisiologia do político. Ou seja, ele só se mexe a toque de propina. Sem dinheiro sujo o político não vota. A propina é a força propulsora da energia política. Quanto mais dinheiro, mais entusiasmo e mais disposição para varar noites em votações importantes para o país. Quanto maior é a propina, mais autêntica é a honestidade do político. A firmeza no olhar e a convicção de nobres ideais é diretamente proporcional aos depósitos existentes em paraísos fiscais. Se o político é acanhado, fica evidente sua condição de mocinha debutante. Mas, à medida que o patrimônio cresce, a voz engrossa e o peito tufa sob ternos luxuosos e bem cortados.

O fato é que a coisa avacalhou dum jeito tal que está todo mundo desorientado. O cenário é muito preocupante porque a confiança da população é simplesmente zero. Ninguém em sã consciência acredita em mais nada nesse país. Há poucos dias presenciamos ao vivo e em cores a queda da mais alta Corte, que tombou pela espada do senador Calheiros. Agora, ninguém mais se vê obrigado a cumprir decisão judicial, uma vez que o STF estabeleceu jurisprudência nesse sentido. Ninguém acreditava na política e, agora, também, ficou claro que os três poderes da república são uniformes no seu funcionamento disfuncional. Ou seja, o dito PADRÃO vale pra todo mundo.

Voltemos à pergunta de antes: O que vamos fazer com o cadáver? Daqui a pouco ele vai começar a feder e por fim vai espocar de podre. O abacaxi espinhoso está em nossas mãos para ser descascado. O modo de fazer isso, talvez nos obrigue a passar por um doloroso processo de amadurecimento civilizatório. Queira Deus, consigamos fazer a travessia sem traumas irreparáveis. 




terça-feira, 22 de novembro de 2016

SIMPLIFICAR PARA ARRECADAR


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 22 / 11 / 2016 - A276

O governo de Mato Grosso deu início a um audacioso projeto de reforma do ICMS. A nova estrutura de tributação proposta para ser debatida com a sociedade é representada por cinco diretivas que caracterizam o ICMS-SINTA 4.0: Simples, Isonômico, Neutro, Transparente e Arrecadador. Simplicidade é sinônimo de segurança jurídica, na medida em que propõe uma faxina geral e abrangente no entulho de regras que atrapalha o ambiente de negócios. Isonomia na tributação sobre consumo indica uniformidade de alíquota para coibir pressões de empresários por benefícios fiscais. Com isso, busca-se também reduzir o custo dos controles e consequentemente frear as contendas judiciais. A Neutralidade pretende não criar distorções no ambiente de negócios. A Transparência é um direito básico do contribuinte, que precisa saber o destino dos impostos arrecadados. Por fim, a Arrecadação é a finalidade maior do sistema tributário. Daí, que todos os esforços devem ser envidados na eficiência da máquina fiscal, de modo que o Estado consiga cumprir seus objetivos e suas metas orçamentárias.

Ressalte-se que tudo isso é apenas uma proposta a ser colocada em audiências públicas para análise cuidadosa, uma vez que a estrutura normativa do ICMS é resultante do acúmulo de regras fossilizadas pelo tempo. Mesmo assim, a iniciativa do órgão fazendário é louvável pela coragem de enfrentar um desafio de tamanha envergadura. De qualquer forma, a mudança é necessária. O estado do Mato Grosso possui uma das mais intrincadas legislações de ICMS. Como bem dito pelo Professor Eurico de Santi, ter regra demais é como não ter regra nenhuma.

Em contraposição a vinte anos de discussões inócuas em torno da reforma tributária, há sim, projetos viáveis para se alcançar um modelo mais justo e mais racionalizado de tributação. A Fundação Getúlio Vargas, por exemplo, possui um núcleo de excelência denominado Centro de Cidadania Fiscal, que é pilotado por expoentes da mais alta casta tributária, como Eurico de Santi, Bernard Appy, Isaias Coelho e Nelson Machado. Essa equipe dispõe de modelos bem elaborados e prontos para operacionalização em escala nacional. Claro, obvio, é sabido de todos nós que a viabilidade de tais projetos não depende da qualidade técnica dos modelos existentes. O fator crucial está na política. Melhor dizendo, no jogo político de interesses regionais. O estado do Mato Grosso está mostrando que os obstáculos podem ser transpostos. É possível que nos últimos vinte anos tenha se desenrolado muito jogo de cena e pouco interesse de se trabalhar seriamente no assunto. Agora, com a economia em frangalhos, empresas e governos estão correndo atrás do prejuízo.

Seria oportuno estudar o apego do legislador à complexidade desenfreada. Por que tudo é feito da pior forma possível? Por que tudo é TÃO complicado? O que há por trás de tudo isso? Quem ganha; quem perde? Será que a corrupção está por trás disso tudo?

Estranhamente, o órgão fazendário perde muito dinheiro com os rebuliços normativos. Tal comportamento é mais presente no Fisco Estadual. A Receita Federal segue na direção oposta, com uma normatização bem menos confusa e com uma estrutura administrativa superior aos seus correspondentes estaduais. Todo esse aparente cuidado foi seriamente comprometido pela operação Zelotes, da Polícia Federal. Assim mesmo, os tributos federais dão menos trabalho aos Contadores.

A Secretaria de Fazenda do Amazonas é uma das mais organizadas do país (talvez seja a melhor). Mesmo assim, carrega nos ombros um monte de pecados e de excessos normativos. O Regulamento do ICMS/AM está cheio de inconsistências e de rebarbas que precisam ser aparadas. Se o viés técnico tivesse poder de orientar um grande trabalho de reformulação legislativa, é provável que houvesse um incremento na arrecadação de impostos. O problema está nas exceções e na multiplicidade de acordos setoriais que desequilibram o princípio da equidade. Ninguém quer mexer no vespeiro ou desagradar figuras expressivas da economia amazonense.





sexta-feira, 18 de novembro de 2016

A ERA DOS CIDADÃOS CRÍTICOS


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 18 / 11 / 2016 - A275

Taxada de quarto poder, a grande e poderosa mídia tradicional se acostumou com a prática de estabelecer padrões de comportamento aos incautos membros duma sociedade alienada. A televisão, por exemplo, atuava como uma habilidosa dançarina que conduzia o parceiro aos quatro cantos do salão sem que ele percebesse a manigância. Daí, a justificativa do exorbitante custo publicitário para adentrar nos ambientes familiares. Quem desembolsava mais dinheiro, conquistava mais corações. Ergueram-se assim os impérios políticos e capitalistas, que fizeram gato e sapato das consciências daqueles que só conseguiam enxergar um lado da verdade. Pois bem. A bomba atômica da internet espatifou esse paradigma aparentemente indestrutível. Agora, as verdades são multifacetadas – um autêntico caleidoscópio. Fato subsequente, o congelante torpor se esvaiu da alma do cidadão comum, que acordou para uma realidade áspera e beligerante. Ou seja, cortinas caíram, máscaras derreteram e a velha moral se fragilizou. Todo o aprendizado sobre valores e condutas encerrava um dogmatismo maniqueísta que atormentava as pessoas com dilemas variados. O foco era exageradamente restrito.

O fenômeno é mundial. E o espanto também. Ganha força, uma onda de descontentamento em relação às autoridades constituídas. A eleição do espalhafatoso Donald Trump apanhou todos no contrapé (o improvável aconteceu). Indagações persistentes transpassaram cabeças atordoadas de gente das mais variadas nacionalidades. Por que então os acontecimentos não seguiram o script convencional? Tudo estava prontinho para a posse da experiente Hillary Clinton, que atendia a todos os requisitos do candidato padrão. Seu oponente republicano era um completo antagonista dos modelos estabelecidos, que rompia convenções e desconstruía a postura do politicamente correto. Como interpretar um cenário tão surreal?

Análises mais detalhadas do processo eleitoral indicaram uma população decepcionada com o sistema político americano. A candidata democrata encarnava tudo o que de mais censurável acontecia nos bastidores das relações incestuosas entre o público e o privado. Relatos suspeitíssimos de tráfico de influência estão vinculados a cifras astronômicas que tufaram os bolsos da família Clinton. O pragmatismo econômico e o lobby persistente se entranharam nos assuntos oficiais quando a senhora Hillary ocupava o alto escalão do governo. A confusão dos e-mails processados fora do sistema oficial só ratificava a suspeita de ações reprováveis. Outra queixa da população excluída dos ganhos fartos está na soberba das elites aristocráticas que desprezam os menos favorecidos. A candidata democrata simboliza essa classe dominante pelo seu visceral relacionamento com os banqueiros de Wall Street. O candidato Trump não era um político profissional e, portanto, não estava impregnado com os pecados do poder. O senhor Donald dizia aquilo que as pessoas pensavam, mas temiam expressar em palavras. No final, as caixas de ressonância funcionaram direitinho.

O Brexit inglês e o “Não” colombiano colocaram em xeque o ideal democrático. Talvez, porque esse dito ideal nasceu e floresceu num ambiente de manipulação. Muitos não querem admitir, mas não há como negar a existência duma crescente tensão social (a velha luta de classes). Só que agora se forma uma espécie de levante. O pobre marginalizado não vê motivos para defender a estabilidade da elite aristocrática. E as redes sociais têm papel fundamental nesse processo. Por isso é que vez por outra um magistrado doido manda bloquear esses canais de interatividade, visto que uma população esclarecida é o pesadelo maior do opressor. O lado perverso desse jogo social está na exacerbação de conflitos e na intensificação de atos preconceituosos. E, claro, toda essa miscelânea se apresenta como um prato cheio para os populistas de plantão. O Trump de hoje pode ser o Bolsonaro de amanhã; ou o Tiririca de 2018.

Nós já provamos um pouco do veneno quando metade da população não concordou com os resultados das urnas. A consequência do imbróglio se traduziu num longo e doloroso processo de impeachment. O pior é que a mudança de comando não aliviou a percepção negativa que a população tinha dos políticos e de toda a administração pública. Desapontamento e raiva fermentam no peito do brasileiro numa intensidade ainda maior. Enquanto isso, a politicada não larga mão dos esquemas de sempre. Parece que o limiar duma revolução moralizadora só fomenta a roubalheira. É preciso fazer o pé-de-meia antes de a coisa toda explodir em milhões de fragmentos democráticos. 





segunda-feira, 14 de novembro de 2016

PERVERSIDADE DOS REGIMES ESPECIAIS


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 15 / 11 / 2016 - A274

A crise financeira que assola as contas do Rio de Janeiro adquire contornos trágicos, com possibilidade dos servidores públicos ficarem sem salário nos últimos cinco meses de 2017. As medidas corretivas contemplam aumento de desconto previdenciário e majoração da alíquota do ICMS, que já é a maior do país. Ou seja, a população fluminense está sendo convidada a pagar o prejuízo causado por anos de desmando administrativo (como de praxe). O bode expiatório é sacrificado aos deuses enquanto o governo segue limpinho na sua gastança desenfreada. Meses atrás, o governador interino ficou numa saia justa por causa duma licitação de valor astronômico para bancar um rega-bofe escandaloso. Tudo foi cancelado porque a imprensa caiu de pau no assunto. A culpa oficial de tantos problemas está na queda de arrecadação, principalmente dos royalties. Mas também, vale ressaltar que cerca de R$ 200 bilhões foram sangrados do erário na forma de incentivos fiscais. Não fosse essa exacerbada política de regimes especiais o quadro geral do Rio de Janeiro estaria bem mais equilibrado.

A guerra fiscal joga as unidades federativas numa arena de disputas sangrentas, onde é impossível sair incólume. Alguém sempre paga o pato. Toda vez que se coloca mais dinheiro num bolso, o outro fica prejudicado. Quando um, ganha, o outro perde. (a matemática é insofismável). Mesmo assim, os regimes especiais são exaustivamente utilizados como política de desenvolvimento regional – não se trilha rotas alternativas ou não se sabe fazer outra coisa. O mexe remexe normativo para legalizar tantos solavancos tributários cria um buraco no orçamento, que é tapado pelo sacrifício dos mais fracos. O alvo preferencial é sempre o mais pobre, que já sofre horrores com o mais escarnecedor sistema regressivo do mundo. O rico não padece tanto porque quanto maior é a renda, menor é a carga relativa. Daí, o conceito da regressividade.

A progressividade no Brasil é um tabu difícil de quebrar porque o legislador se recusa a mexer no bolso do rico. Temos uma das menores taxações nominais sobre renda e patrimônio. Por exemplo, o governo francês abocanha 60% duma herança enquanto que o estado do Amazonas cobra 2% somente. Já, a cesta básica amazonense é a mais taxada do país. Isto é, todos os outros Estados possuem tributação reduzida para a cesta básica, menos o Amazonas. O pobre que se dane. Essa é a mensagem irradiada pelo poder público. Meses atrás, foi noticiado na internet que 45% dos rendimentos da família do ex-presidente Bill Clinton foram convertidos em impostos, enquanto que a nossa Lavagem Oficial da Repatriação foi beneficiada com alíquota de 15%. Por aqui, a sonegação de grande escala é premiada por leis boazinhas ou por reiterados programas de parcelamento, deixando o contribuinte honesto com cara de palhaço.

No paraíso da Zona Franca de Manaus vivem os empreendimentos geradores de empregos que, por tabela, alimentam uma infinidade de pequenos negócios. No frigir dos ovos, tudo gera renda e desenvolvimento. Mas, como não existe almoço grátis, alguém precisa suportar as agruras do inferno fiscal para manter o equilíbrio de forças. Aqui, percebe-se claramente uma brutal diferença entre dois polos econômicos: Indústria e Comércio. Enquanto o primeiro se comporta como um bebê chorão e mimado, o outro é tratado como bastardo. Os agentes governamentais formam uma blindagem em torno da ZFM, estando sempre de prontidão para embalar a criança. A Sefaz, por exemplo, atende imediatamente qualquer solicitação da FIEAM para discutir aspectos normativos ou procedimentos técnicos legais. Enquanto isso, o Conselho Regional de Contabilidade aguarda resposta para uma solicitação de esclarecimento protocolada dia 16 de janeiro de 2016. As insistentes cobranças de audiência não amoleceram o coração do órgão fazendário. Está pendente também um pleito acordado em reunião com o Governador para conferências mensais com a classe contábil das empresas comerciais. Toda essa marginalização acontece de modo grosseiro e ostensivo, quase um acinte.

A conta contábil Renúncias Fiscais não foi aberta ao TCE. A figura jurídica do Sigilo Fiscal é um instrumento utilizado para esconder o jogo de desigualdades e de injustiças tributárias. Tudo é feito para que institutos de pesquisas não consigam construir um panorama abrangente do sistema fiscal brasileiro. A ideia é que um não saiba o que o outro está ganhando. E tudo fica camuflado no pântano sombrio dos acordos de gabinete (feitos com os amigos do rei). Por outro lado, esse sistema perverso não é frontalmente combatido porque muita gente, lá no seu íntimo, quer mesmo é tirar proveito da situação. Cada um corre pra garantir o seu lado. O resultado está aí, na forma da tragédia fluminense, que pode ser o prenúncio duma onda a varrer o país inteiro. Quem sabe, talvez, lá debaixo dos escombros alguém possa enxergar o óbvio.









segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A MELHOR FERRAMENTA PARA O PIOR TRABALHO


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 8 / 11 / 2016 - A273

Numa magnífica e providencial exposição o Jurista Eurico de Santi traçou um panorama do nosso sistema jurídico fiscal. Ele iniciou sua palestra com o relato duma iniciativa da Receita Federal, que convidara segmentos do empresariado para discutir modificações na legislação do Pis/Confis. Tal acontecimento indicou uma mudança de paradigma, onde não mais é o Estado que ordena, regula e determina. As soluções devem surgir da união conjunta de esforços e do debate objetivo.

Certa vez, o Diretor de Impostos do FMI, sr. Richard Bird, esteve no Brasil para discutir particularidades do nosso sistema tributário. Do alto dos seus 50 anos de experiência ao redor do mundo, ele afirmou que nunca tinha visto todos os possíveis problemas fisco tributários, juntos, num mesmo país. O senhor Bird declarou ainda que a nossa arrecadação é muito alta e que por isso mesmo não deveria haver motivo para reclamação. Seguindo nessa linha de raciocínio, o Tributarista José Roberto Afonso disse que os fiscais brasileiros aplicam cada vez melhor um sistema tributário cada vez pior. Trocando em miúdos, possuímos a tremenda eficiência tecnológica do SPED para aplicar numa legislação que não faz mais sentido. As infinitas discussões sobre os vastos conflitos normativos são concentradas em aspectos específicos ou questões pontuais conectadas ao cipoal legislativo. Isto é, mexe-se numa coisa e desmantela-se outra. Os acordos pactuados não se sustentam porque o problema está no sistema como um todo. A solução depende duma abrangente articulação. É preciso pensar juntos: governo e sociedade.

O Jurista Francisco Pontes de Miranda disse que, no Direito, o cindir é desde o início. Tal qual seja, lícito ou ilícito; bem móvel ou imóvel; fungível ou infungível etc. Por esse caminho vai se criando configurações e categorias jurídicas de tributação. Vamos então aos cortes. O ICMS é cortado em 27 estados, enquanto que o ISS (contaminado pelo ICMS) é cortado em 5.760 municípios. Um oportuno conceito extraído do livro Normat System indica que cada critério normativo leva à construção dum sistema específico. Sendo assim, temos 27 sistemas de ICMS e 5.760 sistemas de ISS – todos muito complexos. E ainda vem a União abocanhar parte dos tributos sobre consumo (Pis/Cofins), os quais são visceralmente integrados, tanto com o ICMS quanto com o ISS. Isto é, para pagar Pis/Confins é preciso buscar referências no ICMS e no ISS. O Pis e a Cofins são estratificados em 56 setores ou regimes de enquadramentos tributários. O cruzamento de todas essas taxações gera 8.709.120 sistemas jurídicos, onde cada cidadão brasileiro pode perfeitamente interpretar cada um deles do modo que achar mais conveniente. Essa é a extraordinária fonte da pujante indústria do contencioso fiscal. Não à toa, mais de 100 milhões de processos judiciais estão em tramitação, sendo metade disso relacionado às brigas entre Fisco e Contribuinte. É dessa forma que está construída a base sobre o consumo no Brasil. Ressalte-se que, em média, um novo sistema é criado a cada novo dia. Isso significa que os autos de infração fiscal podem ser um, hoje, e outro, amanhã. As mutações são frenéticas e desordenadas.

Para fechar a desgraceira, somos reféns da Maldição do Lançamento por Homologação, que resulta em mais complexidade e mais contencioso fiscal (samba do crioulo doido). O lançamento por homologação cria mais interpretações, mais dificuldades, mais generalidades, mais insegurança, mais desigualdade, mais fiscalização, mais incerteza... O Brasil tem 200 vezes mais contencioso fiscal do que qualquer outro lugar do mundo. Em outras palavras, o Contribuinte é pressionado a cumprir suas obrigações de acordo com o entendimento formado a partir dos tais oito milhões de sistemas tributários. Num momento posterior, o Fisco interpreta a coisa de outra maneira: com dolo, fraude ou simulação. A balbúrdia toma corpo porque a lei não é clara (tudo pode ser lícito ou tudo pode ser ilícito – efeitos da hiper complexidade). Vence então quem tem mais força ou mais influência sobre o Judiciário. Nas palavras do personagem Vicente, da minissérie Justiça (Rede Globo), “nesse país o Judiciário faz o que o dinheiro mandar”.

Diante dessa vasta confusão normativa fica o empresário focado única e exclusivamente na alíquota ou no MVA. Ele se esquece do imbróglio jurídico tributário que mantém sua empresa num permanente estado de risco patrimonial. Também, não atenta para o imenso custo burocrático que devora suas finanças e aumenta o nível de estresse e de incerteza. Sua energia é consumida por questões secundárias. Ou seja, muito tempo é gasto em assuntos que não geram riqueza para o negócio.






quarta-feira, 26 de outubro de 2016

É HORA DO TRABALHO SÉRIO


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 26 / 10 / 2016 - A272
Artigos publicados

O Brasil é o país do discurso. Reuniões e conferências são marcadas pela disputa de quem fala mais bonito. Depois que a festa acaba os assuntos discutidos e os compromissos firmados perdem substância até cair no esquecimento. Por exemplo, impressiona a gigantesca quantidade de debates relacionados à reforma tributária sem que nenhum órgão fazendário tenha movido uma palha para racionalizar suas normatizações ensandecidas. Em vez disso, a coisa toda só piora com o passar do tempo. E o fato mais curioso dessa história é que o próprio Fisco se faz presente nesses ditos encontros.

É bom lembrar que nenhum desarranjo institucional perdura sem a cumplicidade de grupos com extensa capilarização social. A própria corrupção é o exemplo mais ostensivo. Ela se mantém pujante e enraizada porque, no fundo, a maioria esmagadora apoia esse sistema (de uma forma ou de outra). Isso acontece quando os interesses pessoais são colocados acima de qualquer outra questão moral. O funcionário da loja passa informações vitais para um grupo criminoso praticar um assalto que culmina na morte do patrão. A polícia faz uma investigação meia boca porque o caso não repercute na mídia. Por conseguinte, o agente provocador da tragédia segue sua vida na mais absoluta normalidade. Por outro lado, um grupo de grandes empresários apoia a reeleição dum político envolto em crimes pavorosos, mesmo cientes do esperado desastre social provocado pela votação. O que importa mesmo são os ganhos imediatos e pessoais. O resto que se dane.

Impunidade, foro privilegiado, regalias, gastos públicos astronômicos; tudo isso só existe pela cumplicidade de segmentos da sociedade. O motivo está nas relações espúrias e incestuosas entre o público e o privado, bem como na expectativa de ganhos ou vantagens futuras. Ninguém tem coragem de dizer NÃO (não à corrupção, não à bandalheira, não à demagogia, não ao descaramento etc.). E assim seguimos afundando na lama da degradação institucional, com escândalos sistemáticos pipocando intermitentemente nos diversos canais midiáticos.

Pois é. Acontece que nos últimos tempos os efeitos perversos desse sistema doentio se intensificaram de tal modo que o alagamento deixou de ficar restrito ao porão do navio. O temor geral é de que todos morram afogados. A cada dia que passa as circunstâncias evidenciam um absoluto descabimento de práticas condenáveis. A corrupção se transformou num monstro incontrolável, e, por tal motivo, o grande contingente de cúmplices e avalistas está aos poucos percebendo que é hora do trabalho sério. É hora de dizer não quando o momento for de dizer não. É hora de cobrar seriedade no trato da coisa pública. É hora de construir uma força nacional suficientemente grandiosa para esmagar os joguetes e as manobras sofismáticas de agentes maliciosos que infernizam a vida das empresas e o cotidiano do cidadão comum.

A reforma tributária é perfeitamente viável, desde que se mobilize um exército de profissionais e técnicos capazes de destrinchar a maçaroca de normatizações e, a partir desse trabalho, propor modificações oportunas. A pressão sobre os congressistas deveria sair das mãos do poder executivo e passar para o controle do eleitor. Os empresários podem, perfeitamente, capitanear esse movimento. Basta haver união e coragem para encarar o desafio. A briga também deve contemplar o combate aos desmandos das regalias e da bandalheira generalizada dos salários e das vantagens astronômicas de agentes públicos. É bom lembrar que TODOS os pilares da nossa gestão pública estão corroídos pelo cupim da ineficiência e do descaso. Para completar o pacote de desgraças, o Poder Judiciário vive embrulhado em graves suspeitas de venda de sentenças. Quando, em 500 anos, um juiz resolveu fazer o seu trabalho direito, a nação foi sacudida pela Operação Lava Jato. Imagine então se cada magistrado desse país fizesse metade do trabalho do sr. Sérgio Moro!! Se isso acontecesse, noventa por cento dos nossos problemas seriam solucionados.

Parafraseando o lendário General Temístocles, “devemos perseverar como nação ou morreremos agarrados aos nossos próprios interesses”. A lei da esperteza e do jeitinho, que leva um, a passar a perna no outro, só fortalece o Estado Bandido. A Alemanha se reergueu a partir dos escombros da guerra para chegar ao topo do mundo. Será que fez isso se comportando como os brasileiros?!! Com certeza, NÃO. E ainda nos deu uma aula de organização na copa do mundo, mostrando que o resultado vem a partir do trabalho conjunto, e não do egoísmo ou do discurso demagógico. 








terça-feira, 18 de outubro de 2016

MODELO FISCAL EM CONSTANTE EVOLUÇÃO


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 18 / 10 / 2016 - A270

A mitológica figura do guarda-livros foi extinta, mas seus despojos ainda não estão plenamente fossilizados. Muitos continuam acreditando que a função do Contador é catalisar as ações mirabolantes da administração de modo que tudo fique bonitinho aos olhos das agências reguladoras governamentais. O Contador seria um alquimista – no seu escritório, várias bruxarias são desenvolvidas a partir da papelada recebida dos clientes.

Ainda é muito comum o seguinte procedimento: A empresa segue o mês juntando numa caixa toda a documentação contábil, fiscal, trabalhistas etc., que posteriormente é despachada para o escritório de contabilidade. Chegando ao seu destino, o pacote passa por uma garimpagem a fim de serem formatadas as estruturas de registro e de controle exigidos por lei. Isso significa que os processos ocorridos no período podem ser interpretados erroneamente, uma vez que o Contador não estava presente em cada evento ou fato administrativo. O Sistema Contábil é o mais prejudicado por esse modelo, visto que a qualidade dos registros está vinculada à intenção existente por trás de cada evento patrimonial. Por exemplo, uma sala comercial adquirida para ser posteriormente comercializada não pode ser registrada nas contas de Ativo Fixo e sim no grupo de Investimentos, já que o bem comprado era objeto de especulação imobiliária.

A evolução dos mecanismos de controle fiscal jogou um balde de água fria nesse modelo anacrônico de serviços contábeis. Até mesmo porque ao longo de décadas a nossa contabilidade sempre foi tratada como um mal necessário. O Contador era visto como uma figura exótica, paga pra fazer lá não se sabe o quê. Os vários livros e documentos produzidos tinham um só destino: a Fiscalização. Pra gestão da empresa ou pra alavancar os negócios, o Contador não contribuía com nada. O aperto dos Entes Fazendários passou a dificultar em muito a tal alquimia fiscal e contábil. Os feitiços foram diminuindo, diminuindo, até que hoje muitos registros são relatos fidedignos de operações reais.

Lamentavelmente, a realidade do nosso sistema tributário é pavorosa. Antes, muita gente não se dava conta disso porque tudo era “ajeitado”. Agora, é preciso observar as maluquices normativas das nossas leis transloucadas. Ou seja, qualquer pisada de bola é fatal. Meses atrás, um satélite da Honda foi autuado pela SEFAZ em 700 mil reais por causa dum ÚNICO erro em meio à montanha de normas rigorosamente observadas. Isso mostra o quão ingrata é a profissão de Contador. Um erro em duzentos mil acertos pode destruir negócios e empregos, mas o agente fiscalizador tem plena autonomia para se chafurdar nas normas legais ou violar o ordenamento jurídico ou achacar ou fazer cobranças indevidas que ninguém é responsabilizado. Temos um dos ambientes de negócios mais arriscados do mundo. Os grandes investidores internacionais só aportam por aqui depois de conseguir vantagens absurdas, como é o caso dos juros criminosos do cartão de crédito ou vastos incentivos fiscais para conglomerados econômicos. Claro, óbvio, quem paga a conta de tantas benesses aos estrangeiros são as empresas brasileiras.

Por conta dos riscos fiscais, as empresas já estão capacitando seus funcionários para interpretar as particularidades dos documentos fiscais e, com isso, alimentando o sistema de estoque em conformidade com a situação tributária específica de cada item do DANFE ou do arquivo XML. Tal procedimento encurta em muito o tempo de análise no escritório de contabilidade. Também, promove uma drástica diminuição de riscos de penalidades aplicadas por agentes fazendários.  Esse modelo está transformando Contadores em Gestores de Processos Empresariais, ao passo que o cumprimento de obrigações relacionadas ao SPED está aprimorando a qualidade do Controle Interno dos Clientes.

Agora, mais um avanço tecnológico está em curso. Antes, o objetivo da capacitação dos clientes era receber os registros das mercadorias organizados de modo que houvesse pouquíssimos problemas de validação no PVA. O novo desafio é receber os arquivos já validados pelo PVA do SPED. Para tanto, mais investimentos devem ser despendidos na capacitação de Almoxarifes, Faturistas e até mesmo o pessoal de Vendas e do Financeiro. Tal modelo de gestão administrativa envolve também o SPED Contábil. O fato é que estamos caminhando para a extinção do papel na prestação de serviços contábeis.









terça-feira, 11 de outubro de 2016

ESTEREÓTIPO DO POLÍTICO BRASILEIRO


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 11 / 10 / 2016 - A269

Eventos depreciativos relatados na minissérie Justiça, da Rede Globo, mexeram com os brios de policiais do Rio de Janeiro que protestaram contra a emissora. Reações semelhantes acontecem em outras classes de profissionais quando se sentem ofendidas. Enquanto a Globo retratou um policial vingativo que esconde drogas no quintal da vizinha, outras produções achincalham sem dó nem piedade a politicada em geral. Novelas, filmes, livros, humorísticos e até a internet costumam descrever o político como a pior das criaturas presentes na face da terra. Nenhum outro animal consegue ser tão destrutivo. Nem terroristas, nem tigres famintos, nem uma nuvem de gafanhotos, nem o mosquito da dengue. Nada se compara à devastação provocada pelo Homo Polítikus, que destrói a saúde pública, mata empregos, aniquila a economia do país etc. Interessante, é que, no caso do policial, o alvo dos autores foi um aspecto específico do caráter humano. Mas quando se trata do político, o esculacho é total. Os personagens asquerosos são de todo ardilosos e repulsivos, como se fossem deformidades da natureza, já que não possuem nenhum tipo de empatia ou senso moral. Resumindo, nada de bom pode ser aproveitado. O pior de tudo é que, quanto mais se bate nessa tecla, mais enojada fica a população com todo o sistema. Principalmente, quando os políticos da ficção teimam em figurar nos telejornais algemados ou envolvidos em coisas muito mais pavorosas. Como resultado, em algumas grandes regiões do país, mais da metade dos votantes anulou sua escolha ou simplesmente se absteve.

Notícias alardeadas de políticos envolvidos em crimes de corrupção, homicídios, milícias, tráfico e demais práticas hediondas não incomodam em nada os respectivos partidos dos denunciados. Raríssimamente se vê um partido defendendo seus membros ou pedindo desculpas na TV. Mais raro ainda é haver expulsão de elementos ruins dos seus quadros quando as denúncias envolvem muito dinheiro. Tanta desfaçatez silenciosa evidencia um clima de anuência e alinhamento com práticas insólitas das mais variadas. Qualquer pessoa que se deter um pouco na observação de alguns movimentos dos partidos políticos vai perceber um forte cheiro de enxofre no ar.

Os partidos não punem e seus membros se recolhem nas suas tocas esperando a poeira baixar. Tudo fica quieto. Até o vento para de soprar. Enquanto isso, os programas humorísticos e as novelas estraçalham a imagem do político, mas ninguém ousa levantar a voz para defender o colega. Nenhum sindicato ou associação de políticos vem a público dizer que seus membros são injustiçados por segmentos da sociedade que atacam a conduta de homens puros de coração e de honestidade incontestável. Por esses dias a declaração do Lula se transformou na maior piada do país porque ele teve a cara de pau de dizer que o político é honesto. Essa declaração aniquilou o que restava do PT. Ou seja, quem quiser ser achincalhado e por a carreira política em risco é só falar em honestidade na frente das câmeras.

O fato é que as vísceras putrefatas do sistema político estão expostas ao sol do meio dia. E, lamentavelmente, a maioria da politicada não se deu conta disso. As criaturas continuam nos mesmíssimos esquemas de sempre, explorando exaustivamente tudo e a todos, como uma praga de gafanhotos a devastar uma plantação inteira. O recado das urnas não foi suficiente porque o vício da corrupção é muito mais forte. No Brasil, o súbito aumento do patrimônio em 50 vezes não é alvo de suspeitas e sim, da inveja de quem não teve estômago para roubar.

O sistema predatório da nossa política saqueia o país há muito tempo, alimentando grupos de influência e cooptando meio mundo de instituições para se alinharem a projetos de poder partidários. A face mais ostensiva dessa prática se revelou no processo do impeachment, onde o esquema foi cuidadosamente costurado por uma infinidade de mãos habilidosas e maquiavélicas. O choque titânico de quem queria entrar com quem não queria sair produziu raios, trovões e abalos sísmicos na crosta terrestre. No final, um grupo foi decapitado e o outro assumiu o trono. A pergunta que fica é a seguinte: Por que as batalhas são tão vorazes e sangrentas? Por que tantos morrem e matam? A resposta está na Operação Lava Jato. Ou seja, a vez de um passou e agora é a vez do outro mamar nas tetas cheias de dinheiro. Daqui a alguns anos testemunharemos escândalos ainda maiores. É sempre assim. Essa é a sina do povo brasileiro.





terça-feira, 4 de outubro de 2016

PODERIO TECNOLÓGICO NAS MÃOS DO FISCO


Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 4 / 10 / 2016 - A268

Timothy Berners-Lee, criador da moderna internet (HTTP, HTML e WWW), declarou em 1999 que a web ideal era aquela onde os computadores seriam capazes de analisar o conteúdo e entender as transações entre pessoas e máquinas. Diversos experimentos tecnológicos atestam que a web semântica deixou o campo da ficção científica para se juntar a outras realidades ainda mais revolucionárias. Claro, obvio, o suprassumo de tantos avanços científicos é mantido sob o domínio das grandes potências mundiais. O trabalho pioneiro do buscador Wolfram Alpha inaugurou a categoria dos “mecanismos de conhecimento”, na medida em que buscou sistematizar o conhecimento humano. Fez isso com ajuda de linguistas e lexicógrafos munidos de dicionários que faziam correlações entre palavras e enquadramentos conceituais para dar sentido a expressões mais usadas na internet. O propósito era indexar tudo. Tudo, mesmo. Agora, imagine então uma coisa dessas nas mãos do Fisco. Pois é. Não precisa imaginar.

Uma recente publicação do Consultor Renato Matavelli alerta o contribuinte para o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle fiscal, onde técnicos e auditores das secretarias de fazenda estão debruçados sobre estudos de alta performance para processamento de Big Data. Equipes altamente capacitadas estão trabalhando softwares de última geração para análise de dados via utilização de modelos estatísticos e todos os demais recursos necessários para implementação do projeto “Machine Learning”. Esse “Aprendizado de Máquina” trabalha os princípios da inteligência artificial abastecendo o sistema com regras e algoritmos de modo a capacitar o computador para tomar decisões baseadas na interpretação de um universo de dados ao invés de seguir uma programação objetiva. A tecnologia empregada nesse projeto permite que as máquinas aprendam e também melhorem suas análises com a exposição a novos fatos.

Um dos grandes objetivos do Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) é justamente tornar mais célere a identificação de ilícitos tributários. Para tanto, as administrações fazendárias vêm trabalhando intensamente na racionalização do sistema tributário como um todo. O enrosco normativo ainda vigente no país é o empecilho maior aos projetos de inteligência fiscal. A Grande e insofismável estadista Margareth Tatcher disse certa vez que os paraísos fiscais existem por causa dos infernos fiscais. Por estranho que possa parecer, o nosso inferno fiscal acaba favorecendo a sonegação e outros crimes mais graves. A sobreposição exacerbada de normas conflituosas dificulta a sua transposição para sistemas lógicos e matemáticos. Daí que, desde a Emenda Constitucional 42, passando pelo primeiro Encontro Nacional de Administradores Tributários, na Bahia, e o colossal esforço em prol duma faxina normativa, o Fisco vem trabalhando intensamente na organização dum modelo que encontre ambiente propício ao advento definitivo da inteligência artificial.

Mesmo com tantos empecilhos burocráticos desfavoráveis ao trabalho dos técnicos fazendários, algumas experiências demonstraram eficácia animadora. Uma determinada secretaria de fazenda montou uma equipe formada por especialistas em informática, professores de linguística, estatísticos e tributaristas para desenvolver um modelo de análise que relaciona produtos com suas respectivas classificações fiscais. O objetivo era a identificação de inconsistências e fraudes no ICMS. A experiência apresentou alto grau de assertividade pela identificação de anormalidades relacionadas aos produtos estudados. Por exemplo, o refrigerante transportado em caminhão de 15mil litros era na verdade combustível.

A SEFAZ baiana está utilizando informações do Google Street View e também a identificação do IP de computadores no combate à sonegação. As operações ou atividades suspeitas são alvos dessa nova empreitada, que é denominada de “diligência remota”. Por exemplo, uma operação isenta, mas de grande volume destinada a uma pessoa física revelou que a mercadoria seguiu para um grande depósito de bebidas. Num outro caso de operação milionária o destinatário era uma casa simples da periferia, indicando assim uma ação altamente suspeita. Os técnicos fazendários estão vinculando os IP dos computadores que transmitem as notas fiscais eletrônicas ao endereço físico do estabelecimento, fato esse, que está ajudando e muito o trabalho de investigação e aplicação de autos de infração.