Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 05/04/2016 - A250
O ente público não é digno de confiança. É
menos arriscado prestar serviços para um traficante do que para uma prefeitura.
Negociar com o poder público exige preparação e um complexo aprendizado sobre o
funcionamento dos mecanismos da máquina estatal. É preciso adicionar ao custo
do serviço as propinas, os atrasos e os diversos eventos atravancadores da
liberação do dinheiro. A operação Lava Jato vem desnudando a podridão existente
nas ações administrativas dos gestores públicos. Esse comportamento ardiloso é
intensificado na legislação tributária – cada palavra da lei esconde uma
intenção maliciosa. O objetivo é sempre criar um ambiente de obscuridade capaz
de deixar o contribuinte totalmente desorientado. O empresariado acaba por
contribuir com esse estado calamitoso de coisas, uma vez que não costuma se
interessar por assuntos burocráticos. Essa inércia escancara as porteiras do
bom senso deixando o fisco avançar livremente sobre bolso de quem trabalha e
produz a riqueza da nação.
Um caso mais do que emblemático a se
considerar é a legislação do ICMS substituição tributária. Lá, nos primórdios, o
nascimento de um imposto qualquer era consequência de um ganho. Ou seja, era
preciso, antes, ganhar, para depois pagar. Mais a frente, esse “ganhar” foi
substituído pelo “vender”. E claro, óbvio, venda não é sinônimo de dinheiro em
caixa. Por esse motivo, muitas vezes pagava-se sem ter dinheiro para tal. Mas
não satisfeito, o fisco foi além. Veio então a ideia de pagar sem ao menos ter
vendido. O governo passou obrigar o contribuinte a pagar imposto sobre uma base
inexistente. Era a substituição tributária. De início, houve uma violenta reação
à tamanha insanidade. Mas, na lábia, comendo pelas beiradas e se valendo de
contorcionismos retóricos, o governo conseguiu queimar o lombo do contribuinte
com um ferrete incandescente. No começo doeu bastante, mas de tanto levar ferro
o empresário acabou se acostumando com o abuso. Mas nunca engoliu o desaforo.
O argumento central da substituição
tributária consistia na dificuldade de fiscalização no varejo, concentrando assim
a cobrança na indústria. A lista de produtos alcançados pelo sistema era bem
restrita. Foi com muito xaveco ao pé do ouvido que o empresário caiu na
cantada. E depois de colocar a coisa direitinho, o governo deu o bote com uma
imensa lista de produtos a enfiar goela abaixo do contribuinte. Mais a frente,
perverteu o próprio sistema da substituição tributária ao extinguir a figura do
substituto, mas mantendo o mecanismo de cobrança com a malfadada ST interna.
Daí pra frente todos os esforços foram concentrados na transformação desse
sistema num enrosco normativo impenetrável e indecifrável. As empresas
mergulharam num inferno burocrático repleto de óleo fervente e de muitas
chicotadas com arame farpado.
O interminável e confuso jogo de interesses
presente nas reuniões do Confaz resultou num emaranhado de sobreposições e
conflitos de regras, além do detalhamento minucioso de situações e
enquadramentos de uma variedade infinita de mercadorias. Por exemplo,
mamadeiras e produtos de toucador são mencionados numa sequência exaustiva de
classificações e subclassificações que parece não ter fim. Os produtos se
repetem, se repetem, em inúmeras regras de enquadramento. Coisa de doido. Ou de
gente mal intencionada.
Como desgraça pouca é bobagem, até outubro
de 2010 o contribuinte poderia compensar a duplicidade de cobrança do ICMS na
sua escrituração fiscal. Essa duplicidade acontece quando um produto ST é
vendido para fora do estado. O Decreto 30486/2010 acabou, na prática, com esse
direito de compensação. Explica-se. A partir de então as empresas ficaram
dependentes da autorização da Sefaz para fazer a tal compensação. E, claro, no
frigir dos ovos, a SEFAZ nunca dá essa compensação. Pelo menos é essa a leitura
feita pelo contribuinte. Por isso é que poucas empresas se prestam a solicitar
compensação pela duplicidade de pagamento de ICMS. Há casos de distribuidoras que
sobretaxam suas mercadorias ST nas vendas para fora do Amazonas. Elas sabem que
o melhor a fazer é cobrar a duplicidade tributária do cliente, pois são convictas
da inviabilidade de resgatar da SEFAZ o imposto cobrado em dobro.
As regras de ressarcimento elencadas no
artigo 115 do RICMSAM são impraticáveis. A burocracia envolvida nesse processo
é tamanha que alguns dos menores processos chegam a mais de 700 páginas de
cópias de documentos, planilhas, demonstrativos etc. O tempo necessário para
elaboração do calhamaço de todas as operações passíveis de ressarcimento é
gigantesco. Gigantesco também é o tempo que o funcionário da SEFAZ gasta para analisar
uma montanha de processos recheados de detalhamentos. Portanto, está mais do
que clara a intenção embusteira do legislador. Fica evidente, também, o propósito
da SEFAZ de garantir uma receita extra de ICMS cobrado em dobro. A SEFAZ criou
uma regra impraticável que resultou numa receita formidável, já que nunca
devolve nada. Esse tipo de política doentia restringe a ação dos agentes
econômicos, impedindo a entrada de dinheiro no Amazonas, uma vez que muita
gente se recusa a vender mercadorias ST para fora do estado, pois sabe que
lutar por seus direitos constitucionais é o mesmo que dar murro em ponta de
faca.
A nossa Carta Magna é constantemente
desrespeitada. A Emenda Constitucional número 3 “assegura a imediata e
preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador
presumido da substituição tributária” Pois é. “imediata”, para a SEFAZ é de no
mínimo um ano. É esse o prazo que a SEFAZ diz na lata do contribuinte quando
ele dá entrada num pedido de restituição do ICMS pago em dobro. Alguns
processos rolam por anos sem resposta.
Se a classe dos comerciantes tivesse um
pouco de interesse por “assuntos burocráticos” eles bem que poderiam se unir em
torno de uma luta para derrubar o dito Decreto 30486, garantindo assim o
cumprimento das disposições contidas na EC3. Mas a SEFAZ conhece bem a passividade
do seu contribuinte. Por isso ela deita e rola por cima das arbitrariedades e
das ilegalidades. Tantos rebuliços evidenciam o nosso rarefeito senso de
cidadania e a fragilidade das nossas quebradiças instituições legalmente
constituídas.
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