Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 17 / 5 / 2016 - A253
Em
meio aos açoites e muito sofrimento surge Joaquina estupefata com tamanha
brutalidade, gritando que seres humanos não deveriam ser tratados daquela
forma, ao passo que Dionísia refuta a sobrinha dizendo que eram escravos e não
seres humanos. Lá, pelas tantas, outro personagem da trama diz que escravos não
têm alma. No mercado público os escravos são examinados da mesma forma que se
vistoria um boi ou um cavalo para se averiguar as potencialidades de trabalho e
de produtividade. Nos dias de hoje, quem faz isso é o pessoal do departamento
de RH. No exame médico o candidato mostra os dentes, as mãos, os pés e mais
outras coisas. Nos modernos ambientes de trabalho os empregados são vistos como
partes do processo produtivo e não como seres humanos – são apenas indicadores
de estatísticas e de produtividade. A novela Liberdade Liberdade é repleta de
metáforas, como se quisesse retratar, não o Brasil de ontem, mas o Brasil de
sempre. O apartheid social é gritante e brutal, onde a classe dominante enxerga
o subjugado como coisa e não como pessoa. Curiosamente, essa mesma elite
demoníaca é composta de cidadãos honrados, católicos tementes a Deus e pagadores
de impostos. Enfim, pessoas absolutamente normais. Da mesma forma que em 2016, indivíduos
comuns chutam o gato ou atropelam o cachorro sem que isso possa ter algum
significado, também, naquela época, os maus-tratos passavam despercebidos. Os
universos eram totalmente polarizados e distantes anos-luz um do outro. Daí, a
falta de empatia e desconhecimento das condições deploráveis em que vivia a
classe oprimida.
Os
tempos são outros, e, infelizmente, para alguns burgueses, faz-se necessário
demonstrar publicamente que os escravos modernos são pessoas e não índices
estatísticos, embora, pessoalmente e na reserva de poucos amigos, as convicções
sejam bem mais arcaicas e conservadoras. Claro, obvio, isso tem impacto direto
na política. O político clássico mira o povo pobre com olhar clínico do
cientista que estuda o comportamento dos ratos de laboratório. Ele não tem nenhuma
intimidade com a realidade das favelas, da fome, da violência e principalmente,
da exclusão social. O político oriundo de famílias tradicionais nasceu e
cresceu passeando pelos shoppings ou frequentando ambientes climatizados sem
nunca ter tomado um ônibus lotado na hora do rush. Esse mesmo político se junta
aos seus pares para formular políticas de inclusão social e melhoria de vida
das pessoas pobres e marginalizadas. Para não cometer equívocos nem injustiças,
essa elite dominante vai para o laboratório observar o comportamento dos
pobres. Os estudos envolvem mobilidade, saúde, educação, agressividade,
reprodução etc. No final, gráficos e laudos técnicos acabam por dá suporte aos
projetos sociais. Quando enfim, acontece a operacionalização de tais projetos,
descobre-se que não era bem isso que o pobre precisava. Os políticos e seus
assessores ficam aturdidos e se perguntando onde estava o erro. Do lado de lá,
os pobres ficam revoltados porque ninguém foi falar com eles. Afinal de contas,
o cientista não conversa com o ratinho branco; ele simplesmente constrói juízos
a partir da observação. O cientista não sabe exatamente o que tem dentro da
cabeça do rato. Ele não é um rato.
Nossa
elite política é uma extensão da Casa-Grande, onde tudo que faz é baseado em
suposições relacionadas à vida na Senzala. Antes da era PT os pobres nunca
haviam tido a sensação de serem verdadeiramente representados. Algo semelhante
ao burguês simpático que tenta ser amigo do favelado e não consegue por existir
um abismo entre os dois lados. O Lula, com toda a sua alopração, conseguiu se
conectar com a alma do pobre. E o pobre sentiu essa conexão (pela primeira vez
na história do Brasil). Talvez por isso é que, a despeito da montanha de
roubalheira do PT, muita gente insiste no vermelho da alma. O pobre sabe que
tudo voltou ao começo. A Casa-Grande está de novo no poder, cheia de brancos
ricos machos, conservadores, elitistas, que olha seus pares com empatia, mas
que enxerga no pobre uma criatura exótica necessitada de benevolências do
Estado. Talvez um pouco mais de ração ou de banho de sol, ou um pouco de circo,
ou de discursos enigmáticos possa enfim alegrar o pobre e fazê-lo suportar
resignadamente o ônibus lotado ou a falta de oportunidades para subir na vida.
A
TV local está cheia de figuras bizarras visitando favelas e abraçando pobres
desmilinguidos maltrapilhos, ao mesmo tempo em que fica patente um forte clima
de constrangimento e de dissimulação. Um teatro grotesco e mal acabado onde o
pobre sabe que é tudo fingimento em prol da construção da carreira política do
bonitão espertalhão.
A
velha política está de volta num governo ilegítimo não eleito pelo povo; um
governo de conchavos feitos na calada da noite entre homens brancos, ricos e
conservadores. Lembrando que, ao contrário dos aloprados do PT, essa turma que
chega é tarimbada na arte de não deixar rastros. Ressalte-se que o modelo
petista estava num grau crítico de degradação e por isso mesmo tinha que ser
substituído. Novas eleições, então, seria o caminho mais prudente. Nesse
momento, o risco do pobre alforriado é de voltar para a Senzala. O link foi
quebrado.
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